O principal meio de transporte para o comércio global é a navegação mercantil, respondendo por cerca de 90% do share mundial de logística, com uma frota superior a 100.000 navios (OCDE, 2024). Juntos, esses navios consomem cerca de 7 milhões de barris de petróleo por dia (GTD, 2021. p. 3), o que acaba provocando o indesejado efeito das emissões de gases poluentes na atmosfera. Estima-se que a navegação mercantil seja responsável por cerca de 3% das emissões globais de CO2, sendo projetado para o ano de 2035 um total de 1 bilhão de toneladas desse gás emitidos pelos navios (OCDE, 2018, p. 13).
Considerando que a navegação mercantil começa e termina em um porto, é fácil perceber que uma parte dessas emissões de gases acaba afetando a qualidade de vida nas cidades portuárias, contribuindo para deteriorar a relação porto-cidade. Neste estudo se faz uma reflexão acerca do tema, numa tentativa de contribuir para a busca de mais efetividade na redução dos impactos negativos que a atividade portuária provoca nas cidades que sediam portos e, com isso, melhorar a qualidade de vida de sua população, por meio da redução das emissões de gases poluentes na atmosfera e do barulho produzido pelos navios em suas operações no porto.
Um porto mais sustentável é também um porto mais competitivo e, assim, capaz de criar maior valor econômico. Não há dúvidas que a atividade portuária traz inúmeros impactos positivos para o desenvolvimento do comércio e para a economia dos países envolvidos no trade internacional, desempenhando um papel essencial nas cadeias globais de abastecimento. Os portos e seus stakeholders agregam valor às atividades que desempenham e, com isso, geram, direta ou indiretamente, empregos, renda, investimentos locais e estrangeiros, incremento da arrecadação tributária, fomento à indústria e ao comércio e desenvolvimento de variados modais de logística de transporte de carga.
É o que transparece da definição de porto sustentável oferecida pela PIANC – The World Association for Waterborne Transport Infrastructure:
“aquele no qual as autoridades portuárias, juntamente aos usuários do porto, desenvolvem e operam de forma proativa e responsável, com base em uma estratégia de crescimento econômico verde, na filosofia de trabalhar com a natureza e na participação de stakeholders, a partir de uma visão de longo prazo sobre a área em que está localizado e de sua posição privilegiada dentro da cadeia logística, garantindo assim o desenvolvimento que antecipa as necessidades das gerações futuras, para o seu próprio benefício e para a prosperidade da região que serve.” (PIANC, 2014, p.9).
Em face do constante crescimento do comércio global, o aumento da eficiência, da sustentabilidade e da segurança da atividade portuária é essencial para manter os países competitivos no cenário internacional. No mundo globalizado, o trade cresce constantemente e cada fatia desse mercado é disputada de forma cada vez mais intensa, inclusive pelos portos. Segundo estatísticas da ONU, em 2022 as exportações globais cresceram 13,8%, vindo de um crescimento de 26,5% em 2021, alcançando a incrível cifra de 22,3 trilhões de dólares (UN, 2022).
No entanto, em meio à essencialidade da atividade portuária e dos reflexos positivos que produz, não se pode negligenciar também os seus impactos negativos. Eles existem e afetam, sob diferentes formas, a vida das pessoas e do meio ambiente, muito embora, no balanço geral dos valores, se compreenda sem muito esforço que os impactos positivos superam em muito os negativos. É o preço a pagar, por assim dizer, para se alcançar os benefícios gerados pelo comércio entre as nações e o progresso deles decorrentes.
Convencionou-se chamar os impactos positivos e negativos entre o Porto e as cidades portuárias como “relação porto-cidade”. As preocupações inerentes a essa relação permeiam os estudos e normas do setor portuário há décadas, na tentativa de reduzir ou eliminar as consequências indesejáveis dessas atividades, ao mesmo tempo em que visam criar vantagens e benefícios para o meio ambiente e para a população que habita as regiões próximas ao porto.
De acordo com as recomendações da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico – OCDE, o que distingue cidades portuárias bem-sucedidas de cidades portuárias menos bem-sucedidas e mais polarizadas é o sentimento de orgulho e “propriedade” do porto pela população e comunidade empresarial. Este orgulho é, em muitos casos, baseado num sentido histórico, mas mantido por políticas efetivas e boas práticas por parte das autoridades portuárias e municipais (OCDE, 2013, p. 72).
Os impactos negativos mais comuns que decorrem das atividades portuárias e que afetam as cidades no seu entorno costumam acontecer em terra (onshore), sendo os mais frequentes o tráfego intenso de caminhões e trens, o barulho excessivo, o odor e a poeira intensos, o descontrole da fauna sinantrópica, os riscos de acidentes e explosões e a insegurança. Mas, além dos impactos onshore, existem também os offshore, que muitas vezes não são tão facilmente percebidos pela população, como é o caso da emissão de gases poluentes na atmosfera local pelos navios, o vazamento de óleo combustível no canal de acesso ou dársena e as obras de dragagem.
Um estudo de 2007, envolvendo a análise de dados de cerca de 800 portos da América do Norte, Europa e Ásia, demonstrou que a qualidade do ar e o barulho estão as cinco maiores preocupações decorrentes da atividade portuária (OCDE, 2011. p. 32).
Diante disso, o presente artigo se concentrará especificamente sobre o impacto nas cidades portuárias decorrente da emissão de gases poluentes na atmosfera e da produção de barulhos e vibrações causadas pelos navios atracados ao cais do porto, apresentando estudos, cases e informações práticas sobre as vantagens e benefícios da adoção de sistemas de fornecimento de energia elétrica em terra para navios atracados ao cais do porto, como alternativa à utilização de combustíveis fósseis.
Quando atracam no porto, os navios precisam utilizar energia elétrica gerada a bordo pelos seus motores auxiliares a diesel (MCA) para atender às necessidades de determinados sistemas e equipamentos, como iluminação, aquecimento, ar-condicionado, equipamentos de emergência, bombas de lastro, guindastes de bordo e tomadas para contêineres refrigerados. A energia necessária para isso é produzida pela queima de grandes quantidades de combustível, gerando a emissão de gases extremamente poluentes na atmosfera, que acabam sendo levados pelo vento para a cidade e regiões do entorno portuário.
Comparado com outros modais de logística, como o rodoviário ou o ferroviário, o transporte marítimo continua sendo o meio de transporte mais eficiente, quando se utiliza como métrica o dióxido de carbono emitido por tonelada de carga transportada. No entanto, a enorme escala das atividades de transporte marítimo gera enormes quantidades de emissões de gases poluentes (WSC, 2024), que afetam a composição atmosférica, impactando o clima e a saúde humana (OCDE, 2013. p.116).
Embora os navios estejam sujeitos a rigorosas regras de eficiência energética instituídas pela IMO – International Maritime Organization, como a EEDI – Energy Efficiency Design Index, para navios construídos a partir de 2013, e a SEEMP – Ship Energy Efficiency Management Plan, para navios anteriores a 2013, a quantidade de gases poluentes emitidos na atmosfera ainda é muito grande. Isso porque não existe o mesmo rigor no que pertine ao controle das emissões de poluentes e à composição dos combustíveis dos navios mercantis como existe, por exemplo, para o transporte rodoviário de carga.
Os principais compostos emitidos pelos navios nas suas operações são o dióxido de enxofre (SOx), o dióxido de carbono (CO2), o carbono negro (BC), o monóxido de carbono (CO), o óxido de nitrogênio (NOx), hidrocarbonetos (HC) e material particulado (PM) (OCDE, 2011).
Segundo a OCDE, as emissões de dióxido de carbono (CO2) relacionadas com o transporte marítimo foram estimadas em 3,3% e das emissões globais em 2007, enquanto as emissões de óxido de nitrogênio (NOx), provenientes de combustíveis fósseis, foram estimados em cerca de 10% a 15% (OCDE, 2013. p.32).
Dados de 2005 reportados à Comissão Europeia informam que o tempo médio de operação dos motores de um navio atracado aos berços de todos os portos em que faz escala é de 700 horas por ano (OCDE, 2011. p. 54), o que equivale a 6% do consumo total de combustível do navio (OCDE, 2013. p. 32). Multiplicando esse número pelos cerca de 103.000 navios que compõem a frota global mercante, segundo dados estatísticos produzidos pela United Nations Conference on Trade and Development (UN, 2022, pag.78), teremos a dimensão total estimada do impacto das emissões de gases pelos navios no período em que estão atracados.
Um estudo conduzido pelo projeto Green Transition Denmark sobre poluição do ar e do meio ambiente revelou que um grande navio de cruzeiro com 4.000 passageiros atracado no berço de um porto emite uma quantidade de NOx e de material particulado (PM) por segundo equivalentes a algo entre 3.500 e 5.000 carros. (GTD, 2021. p. 9). Segundo a Siemens, 8 horas de atracação de um navio de cruzeiro produz NOx equivalente às emissões de 10.000 carros (SIEMENS, 2024). De forma geral, as emissões dos navios liberam de 150 a 500 vezes mais enxofre e duas vezes mais NOx por tonelada-quilômetro do que um caminhão (OCDE, 2013. p. 32; e GTD, 2021. p.3).
De acordo com a OCDE, a quantidade de SOx e NOx emitida pelos navios durante as fases de manobra, carga, descarga e estadia é de 4,5% e 6,2%, respectivamente, da poluição total emitida pelos navios, o que pode representar algo entre 30% e 50% das emissões da cidade portuária (OCDE, 2013. p. 32).
Apesar do novo limite global para as emissões de enxofre, estabelecido a partir de 2020, ter reduzido a mortalidade relacionada com a poluição atmosférica causada pelo transporte marítimo em cerca de 20%, essa poluição ainda é responsável por cerca de 40.000 mortes prematuras por ano na Europa, com custos de saúde pública delas decorrentes superiores a 65 bilhões de dólares, de acordo com Centro Dinamarquês para Meio Ambiente e Energia – DCE, da Universidade de Aarhus (GTD, 2021. p. 4). O enxofre está na origem de muitas partículas presentes no ar atmosférico que estudos epidemiológicos têm consistentemente associado a uma série de doenças, incluindo doenças pulmonares e morte prematura, segundo a OCDE (OCDE, 2013. p. 116).
Percebe-se, portanto, que a poluição causada pelas emissões de gases dos navios nos portos implica em um expressivo aumento nos gastos públicos com saúde. Segundo uma estimativa publicada em 2021 pela ONG Green Transition Denmark, os impactos na saúde da população gerados pelos 350 navios de cruzeiro que, em média, atracam no Terminal de Cruzeiros do Porto de Copenhagen representam um total estimado de 13 milhões de dólares de gastos públicos anuais com saúde. (GTD, 2021. p. 9). Para o ano de 2023, a expectativa do Porto de Copenhagen era de receber um total de 389 navios de cruzeiros, o que eleva ainda mais essa estimativa (CMP, 2024).
A OCDE trouxe, em um dos seus estudos sobre os impactos da atividade portuária no meio ambiente, os seguintes dados relativos aos gastos com saúde pública, em tradução livre:
“A poluição atmosférica dos portos apresenta grandes custos externos para as suas cidades. MacArthur e Osland (2011) estimam o valor monetário das emissões atmosféricas dos navios atracados no porto de Bergen entre 10 e 22 milhões de euros. Castells Sanabra et al. (2013) estimaram no seu estudo sobre 13 portos espanhóis selecionados que as externalidades globais foram avaliadas em quase 206 milhões de euros, enquanto a contribuição individual de PM2,5, SO2 e NOx foi de 95, 65 e 46 milhões de euros, respetivamente. Tzannatos (2010) estimou os custos externos da atividade portuária por passageiro de cruzeiro no Pireu em 2008–2009 entre 2,9 e 10,4 euros. Berechman e Tseng (2012) descobriram no seu estudo sobre Kaohsiung, Taiwan, que o custo das emissões dos navios atracados neste porto foi de 119,2 milhões de dólares em 2010. Os custos da poluição atmosférica tendem a aumentar com a quantidade de população da cidade vizinha, com um fator de 1 a 15. Para uma cidade padrão com uma população de 100.000 habitantes, uma tonelada de PM2,5 apresenta custos sociais de aproximadamente 33.000 euros, ao passo que apresenta custos sociais de 495.000 euros para uma cidade de vários milhões de habitantes. O mesmo se aplica ao SO2, cujos custos variam entre 6.000 EUR/tm e 90.000 EUR/tm, respetivamente (Holland and Watkiss, 2002, cited in Castells Sanabra et al. 2013).” (OCDE, 2013. p.33)
As primeiras normas internacionais relevantes que abordaram os impactos ambientais da navegação comercial internacional remontam à década de 1970, como a Convenção sobre a Poluição Atmosférica Transfronteiriça a Longa Distância – CLRTAP, da Comissão Econômica das Nações Unidas para a Europa – UNECE, firmada em 1979 por 51 países da América do Norte, Europa e Ásia, e a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar – CNUDM, firmada em 1982. Porém, embora tangenciem o tema, nenhuma dessas duas normas trata da regulação da poluição atmosférica provocada pelas embarcações e da imposição de metas e limites para a emissão de gases poluentes.
O Anexo VI da MARPOL Convention estabelece limites para as emissões de óxido de enxofre (SOx) e óxido de nitrogênio (NOx) pelos navios. Atualmente, esses limites estão estabelecidos em 3,5% e 0,5%, respectivamente, para áreas comuns de navegação. Em áreas especiais, designadas como sendo de controle de emissões (Emission Control Areas– ECAs), assim consideradas aquelas que contêm altas concentrações de atividade portuária e de população costeira, foram estabelecidos limites mais rigorosos para emissões de SOx e NOx, nos percentuais de 1% e 0,1%, respectivamente. As emissões de partículas finas (PM2,5), partículas ultrafinas (PM0,1) e carbono negro (black carbon) não foram regulamentados pela IMO até o momento.
A Diretiva da União Europeia sobre o enxofre (EU, 2016) exige que os navios que naveguem em mar territorial europeu não utilizem combustível com mais de 0,5% de SOx (óxido de enxofre), a partir de janeiro de 2020, quando navegarem fora das ECAs, e de 0,1% de enxofre (SOx), a partir de janeiro de 2015, quando navegarem dentro das ECAs. Para navios de cruzeiro destinados ao transporte de passageiros esse limite é de 1,5%, a partir de janeiro de 2020. No entanto, as disposições dessa Diretiva não são mandatórias, deixando a cargo de cada Estado Membro a adoção de medidas específicas de controle e conformidade, como transparece do seu próprio texto: “Member States shall take all necessary measures to ensure that marine fuels are not used in the areas of their territorial seas… if the sulphur content of those fuels by mass exceeds:” (o grifo é nosso).
O Brasil, embora tenha internalizado em sua legislação a Convenção MARPOL por meio do Decreto Legislativo nº 499/2009, não dispõe de norma específica, mesmo em nível regulatório, para tratar das emissões de gases poluentes pelos navios em suas escalas nos portos nacionais. Algumas normas tangenciam o tema, como a Resolução CONAMA nº 382/2006, que se aplica apenas às fontes fixas de poluentes atmosféricos, e a Lei nº 9.966/2000, que, embora cite a Convenção MARPOL da IMO, trata apenas da poluição causada pelo óleo das embarcações.
Além das tentativas de limitar a concentração de SOx e NOx por meio da regulação internacional, que se revelaram insuficientes para responder aos problemas de poluição atmosférica das cidades portuárias, outras iniciativas vem sendo estudadas e desenvolvidas para enfrentar o problema da poluição causada pelos gases emitidos pelos navios, como a utilização de biocombustível, gás natural e combustível com baixo teor de enxofre, além do oferecimento de benefícios e subsídios financeiros e tributários pelos portos e governos locais para os navios que utilizarem esses combustíveis alternativos em suas escalas.
Mas talvez a mais promissora das iniciativas seja o que se convencionou chamar de Onshore Power Supply(OPS), que é o fornecimento pelas autoridades portuárias de fontes de energia elétrica de alta tensão em terra para a alimentação dos navios. Trata-se de uma notável inovação de eletrificação na indústria marítima, na qual os motores auxiliares a diesel do navio, que alimentam os sistemas a bordo durante as atracações, são alternados para a eletricidade fornecida pelo porto.
Como já mencionado, após a sua atracação ao cais do porto, um navio precisa gerar energia elétrica para suprir diversas necessidades a bordo, o que é feito normalmente por meio de motores auxiliares a diesel (MCA), o que traz como consequência a emissão de gases poluentes na atmosfera, como acima visto.
O fornecimento de energia em terra através sistemas de OPS permite o desligamento dos motores à diesel, evitando, assim, as emissões de gases nocivos ao meio ambiente e servindo não apenas como uma fonte alternativa de energia para os navios, como também para promover a estratégia de porto verde e melhorar a relação porto-cidade, por meio da redução dos impactos negativos da atividade portuária.
Apesar de não servir para todos os portos e operações portuárias, devido à grande quantidade de variáveis que envolvem a efetividade das medidas de redução da emissão de gases poluentes e de melhoria da eficiência energética, os sistemas de OPS, de acordo com dados do Marine Environment Protection Committee da IMO, materializado no estudo MEPC 68/INF.16, constituem um modelo próximo da excelência nesses quesitos, alcançando níveis entre 95% e 100% na redução de NOx, SOx, PM, HC e de consumo de energia para operações de berço, sendo os serviços de linha ou com escalas frequentes os seus candidatos ideais (IMO, 2015).
A primeira regulamentação internacional relevante voltada para sistemas onshore powe supply dedicados para a navegação mercantil só ocorreu em 2006, quando a União Europeia emitiu a Recomendação nº 2006/339/CE, da Comissão Europeia, sobre a promoção de infraestrutura de OPS para utilização pelos navios atracados nos portos, servindo como general guidelines para que os Estados-Membros construíssem e desenvolvessem esses sistemas.
Ainda em 2006, a Comissão Europeia manifestou uma série de recomendações aos Estados-Membros para a redução das emissões de gases poluentes pelos navios, dentre elas o oferecimento de incentivos econômicos para a utilização de sistemas de OPS para navios nos berços dos portos europeus ao invés da utilização de combustíveis fósseis (EU, 2006).
O desafio de estabelecer um padrão internacional para esses sistemas ficou a cargo da IEC – International Electrotechnical Commission (IEC, 2024), que estabeleceu os primeiros padrões para sistemas OPS através da International Standard IEC/ISO/IEEE 80005-1 (HVSC: alta voltagem), em 2012, e da International Standard IEC/ISO/IEEE 80005-3 (LVSC: baixa voltagem), em 2014, as quais foram revistas e atualizadas posteriormente. Ainda em 2012, a IMO emitiu a MEPC.1/Circ.794, consolidando as informações e padrões até então disponíveis relacionados com os sistemas de OPS.
Em 2017, a Associação Internacional de Portos (IAPH – International Association of Ports and Harbors) criou o Programa Mundial de Sustentabilidade dos Portos, orientado pelos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. Um dos primeiros grupos de trabalho criados foi o do fornecimento de energia em terra para navios (OPS), como medida para melhorar a qualidade do ar nos portos e cidades portuárias e reduzir as emissões de poluentes atmosféricos e de ruído.
O primeiro porto a fazer uso comercial de um sistema de OPS foi o Porto de Gotemburgo, na Suécia, em 2000. Desde então, os principais hubs portuários globais começaram, progressivamente, a desenvolver sistemas semelhantes, a exemplo do Porto de Civitavecchia, na Itália, em 2008. Até meados de 2012, cerca de duas dezenas de portos já haviam implementado um ou mais sistemas de OPS em suas instalações, dentre eles os portos de Antuérpia (Bélgica), Stockholm (Suécia), Long Beach (USA), Vancouver (Canada), Oslo (Noruega) e Rotterdam (Holanda). Atualmente, estima-se que mais de 50 instalações portuárias ao redor do mundo oferecem sistemas de OPS.
O Porto de Rotterdam conta, atualmente, com quatro projetos de implantação de sistemas de OPS em andamento, que compreendem os seus quatro principais terminais: ECT (Amazonehaven), APMT2 (Amaliahaven), VOPAK (Botlek) e o terminal de cruzeiros (Wilhelminakade) (ROTTERDAM, 2024-1).
Nos próximos anos, o Porto de Rotterdam pretende expandir ainda mais a sua oferta de energia em terra, por meio da Rotterdam Shore Power B.V. (RSP), uma joint venture formada pela Autoridade Portuária e pela multinacional holandesa Eneco, para que até 2028 todos os terminais de contêineres de longo curso estejam equipados com sistemas de OPS, o que pode reduzir as emissões em 200.000 toneladas de CO2 e 2.500 toneladas de NOx por ano (ROTTERDAM, 2024-2).
No primeiro semestre de 2023, o Governo da Holanda anunciou um investimento de 140 milhões de euros para a implantação de sistemas de OPS nos portos do país, antecipando as metas da União Europeia, que prevê que todos os portos marítimos que recebem pelo menos 50 escalas de grandes navios de passageiros, ou 100 escalas de navios porta-contêineres, devem fornecer eletricidade em terra até 2030 (EU, 2024).
Em junho de 2023, foi assinado um acordo para implantação do sistema de OPS no terminal de cruzeiros do Porto de Rotterdam, com um investimento total previsto de 15 milhões de euros, em parte financiado com recursos públicos, com expectativa que, já em 2025, 75% dos navios de cruzeiro que atracam no porto passem a utilizar essa nova fonte de energia (ROTTERDAM, 2024-3).
O Porto de Valencia, na Espanha, também em junho de 2023, lançou o seu primeiro projeto de OPS, a ser implantado no cais Costa-MSC Transversal (mais próximo à cidade), com um investimento total previsto na ordem de 11 milhões de euros. O impacto positivo desse projeto pode ser medido a partir dos dados operacionais do Porto de Valencia, que opera, em média, cerca de 80 milhões de toneladas de carga e 7.500 navios por ano.
O projeto espanhol se alinha com os objetivos da agenda de sustentabilidade Europeia e da autoridade pública Puertos del Estado de redução de 55% na emissão de gases pelos navios até 2030, bem como com o conceito de green port, como princípio para a competitividade e o crescimento econômico sustentável, reduzindo os impactos ambientais das operações portuárias na cidade de Valencia. De acordo com o presidente da Valenciaport, o objetivo é integrar esse sistema com outras fontes de energia renovável, com a eólica, por exemplo (VALENCIAPORT, 2024).
No Brasil, infelizmente, não se tem notícias da implementação de nenhum sistema de OPS, em que pese a rigorosa regulamentação e fiscalização em matéria ambiental e portuária exercida por diversos órgãos públicos em nível municipal, estadual e federal e da ratificação pelo Brasil, em 2016, do Acordo de Paris, onde o país se comprometeu a reduzir as emissões de gases de efeito estufa em 37% até em 2025 e em 43%, até 2030, abaixo dos níveis verificados em 2005.
O Brasil possui mais de 80% de sua matriz energética baseada em fontes renováveis de geração de energia elétrica, o que é muito mais do que a média de 30% dos países membros da OCDE (BRASIL, 2021). Essa farta disponibilidade de energia elétrica, em grande parte proveniente de fontes renováveis, é, sem dúvida, um forte indicativo da viabilidade da utilização de sistemas de OPS nos portos nacionais.
Além disso, a possibilidade de oferecer tarifas de energia elétrica mais competitivas e de redução da carga tributária incidente sobre o seu fornecimento nos portos para os navios, pode representar mais um conjunto de atrativos para investimentos em sistemas desse tipo, por meio da redução de custo na oferta de energia elétrica. Dos diversos tributos que incidem sobre a energia elétrica, apenas o ICMS, de competência estadual, representa quase 20% de acréscimo, onerando muito o preço final do insumo.
Um estudo desenvolvido em 2022, como tese de doutorado defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Energia Elétrica da Universidade Federal de Itajubá-MG, fez uma preciosa “análise de viabilidade econômica e ambiental da utilização de energia elétrica com sistema Shore Power em um contexto para instalações portuárias Brasileiras” (VIDAL, 2022).
Nesse estudo, o autor demonstra a viabilidade econômica e ambiental de implantação de sistemas OPS nos portos estudados, concluindo que “além de ganhos com a redução na emissão de gases de efeito estufa, os indicadores financeiros demonstraram um retorno sobre o investimento bem superior à taxa mínima de atratividade considerada (9,25%)”.
Foram selecionadas para esse estudo as 12 maiores instalações portuárias do país, considerados os volumes de cargas operados e o número de atracações no período de 10 anos, compreendido entre os anos de 2010 e 2020, a saber: Santos, Paranaguá, Rio Grande, Suape, Pecem, Ponta da Madeira, Itaguaí, Tubarão, São Sebastião, Angra dos Reis e Ilha Guaíba – Tig.
A viabilidade técnica foi demonstrada não só pela diversidade atual de fornecedores de sistemas de OPS e pela padronização e normatização internacional dessa tecnologia, mas também pela pujança do setor portuário no Brasil, fortemente inserido no market share global da navegação mercantil, bem como pela disponibilidade de energia elétrica no país proveniente de fontes renováveis.
Sob o ponto de vista ambiental, o estudo demonstrou a significativa “redução dos níveis de emissão de CO2 e outros gases de efeito estufa, além da diminuição dos níveis de vibração e ruído nas regiões portuárias”, o que contribui muito para a melhoria da relação porto-cidade, sob o aspecto da redução das externalidades negativas decorrentes da atividade portuária, não apenas com relação às emissões de gases poluentes quanto pela produção de barulhos e vibrações no porto.
Um dos agravantes no que diz respeito à poluição sonora é que, geralmente, os portos operam durante 24 horas por dia, afetando as comunidades mais próximas ao porto. De acordo com estudos revelados pela OCDE, o ruído das operações portuárias pode causar hipertensão, doenças cardíacas, distúrbios do sono, além de prejuízos no desenvolvimento cognitivo e outros sintomas relacionados ao estresse (OCDE, 2013. p.38). Diante disso, algumas cidades têm criado normas que limitam a atividade portuária em certos dias e horários, na tentativa de reduzir esses impactos, como Los Angeles e Long Beach, nos Estados Unidos, Vancouver, no Canadá, e Rotterdam, na Holanda (OCDE, 2011. p.19).
O estudo de viabilidade econômica e ambiental aqui citado é um importante instrumento de avaliação e contribui para o debate público a respeito da consideração da relação porto-cidade sob um viés mais efetivo, por meio de políticas e ações que efetivamente melhorem a vida da população que habita o entorno dos portos brasileiros, ao mesmo tempo em que contribui para o desenvolvimento de operações portuárias mais sustentáveis e mais aderentes ao conceito de green port.
A eliminação da emissão de gases poluentes no ar das cidades portuárias por parte dos navios atracados no porto, através da implementação de sistemas de fornecimento de energia elétrica onshore, pode contribuir muito para a melhoria da relação porto-cidade sob esse novo viés, colocando o Brasil na vanguarda da inovação global em matéria de portos sustentáveis.
Os desafios são grandes e certamente envolverão o esforço de vários agentes públicos e órgãos intervenientes, como a criação de suporte legal, de ajustes no marco regulatório e de execução de obras de infraestrutura, a fim de tornar viáveis os projetos de implantação de sistemas de OPS e de criar condições atrativas para o investimento privado. Mas grandes desafios são comuns na atividade portuária e costumam ser vencidos com planejamento eficaz, regulação adequada e trabalho competente, no que o Brasil é peculiar.
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Artigo de Autoria de Fabiano Ramalho, publicado na Revista Eletrônica Portos & Navios em 01/02/2024. Todos os direitos reservados ao autor – Copyright © 2024.
Fabiano Ramalho
Fabiano Ramalho é Advogado, especialista em Direito Tributário pela FGV, mestre em Direito pela UFSC e consultor em direito portuário e regulatório. Foi CEO do Porto de São Francisco do Sul (SC) e Diretor de Assuntos Regulatórios e Jurídicos da SC Participações e Parcerias S/A – SCPar (SC).
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