A MATRIZ TRIBUTÁRIA E O PROTAGONISMO DO CONTRIBUINTE: EM BUSCA DA CONSCIÊNCIA PERDIDA

As relações entre os dois polos da sujeição tributária, o Estado-Fiscal e o Cidadão-Contribuinte, têm merecido grande interesse dos intelectuais do Direito. Dentre estes, há os que, de uma maneira ou de outra, enxergam uma deterioração crescente da qualidade dessa relação, especialmente com a experiência pós-moderna do Direito Tributário, que parece denotar um certo esvaziamento do protagonismo do contribuinte e a perda da consciência crítica do cidadão.

Pagar tributo virou quase uma obrigação automática, irrefletida, descolada de consequências político-sociais, sustentada por uma gramática cuja semântica oblitera sentidos e camufla privilégios e que representa, segundo Bourdieu, “o trabalho de dissimulação e de transfiguração (numa palavra, de eufemização) que garante uma verdadeira transubstanciação das relações de força fazendo ignorar-reconhecer a violência que elas encerram objetivamente e transformando-as assim em poder simbólico, capaz de produzir efeitos reais sem dispêndio aparente de energia” [1]. 

Esse mesmo enfraquecimento da consciência crítica do contribuinte também condiciona e limita o discurso dos operadores do Direito, gerando uma práxis jurídica que bem caracteriza aquilo que Warat denomina de “senso comum teórico dos juristas” [2]. Dessa forma, a consciência tributária parece assimilar aquilo que há de mais perverso no mundo atual, que é o imediatismo pragmático, o individualismo radical, a efemeridade de valores e o contratualismo moral.

Essa realidade surreal não veio da noite para o dia. É fruto da experiência malsucedida da visão de mundo moderna, a partir do século XIX, com o desenvolvimento da ciência e do capitalismo e a crença num mundo estável, ordenado, seguro, coerente, limpo, sólido. Apesar dos progressos alcançados, essa crença colocou o homem numa espécie de armadilha cartesiana, onde a lógica subjuga os sentidos e a razão predomina sobre a emoção.

Não por acaso, a festa da modernidade terminou com o fracasso da condição humana, representado pelas duas guerras mundiais, pelo colapso da economia global, pelos regimes totalitaristas e pela falácia do Estado do Bem-Estar Social, já na primeira metade do século XX.

Nesse cenário, a consciência humana parece ter sido perdida, substituída por uma forma de submissão voluntária, no sentido dado por Étienne de La Boétie, ou, ainda, de escravidão remunerada moderna, no sentido de Nietzche, que transforma o homem em gado manso, educado e tranquilo, alheio ao mundo que o rodeia e desprovido de uma visão crítica da realidade. É, então, que surgem intelectuais dedicados a investigar essa realidade endêmica, como Nietzsche, Sartre, Heidegger, Foucault, Freud, dentre outros, todos ligados, de forma mais ou menos homogênea, a movimentos como o Existencialismo e o Humanismo.

Dentre eles, escolhi para ilustrar esse pequeno estudo o pensamento de Antoine de Saint-Exupéry, escritor, poeta, aviador, repórter francês e, por que não, filósofo, que viveu na primeira metade do século XX. Autor que ficou imortalizado pelo livro “O Pequeno Príncipe” (erroneamente interpretado como literatura infantil), mas que possui toda uma obra consagrada ao humanismo.

Ele defendia arduamente a retomada de consciência da condição humana, relacionada com a redescoberta do Ser-Humano, tão afetado pelas mazelas do final do século XIX e do início do XX. A experiência das guerras, da vida (sobrevivência) no deserto, do vazio da vida moderna, da desilusão com as promessas da modernidade, influenciaria fortemente Saint-Exupéry, fazendo-o identificar como consequência imediata uma perda da consciência humana, um vazio existencial. Ele escreveu em um de seus textos: “O Homem não tem mais sentido, é preciso absolutamente falar aos homens”. [3]

Diolé [4], escritor francês contemporâneo de Saint-Exupéry, ilustrou bem a preocupação da época vivida pelo autor de “Le Petit Prince”: “não é somente o cenário que é fabricado, elaborado neste século XX, também os sentimentos e a vida interior. Existências inteiras situam-se entre o metrô e o cinema e só se alimenta de imagens em conserva ou vozes gravadas e emoções fingidas […] é preciso evitar toda essa falsa realidade para encontrar a verdadeira.”

Segundo Picard, outro herdeiro da tradição humanista: “nada mudou tanto a natureza do homem quanto a perda do silêncio”. Ele escreveu sobre a necessidade do silêncio da alma e o afastamento do seu contrário, o rumor cotidiano, na mesma linha de ideias de Saint-Exupéry: “A palavra não existe mais como espírito somente como rumor, como maneira acústica… Esse rumor é um vazio sonoro que recobre o vazio insonoro. A palavra autêntica, ao contrário, é plenitude sonora acima da superfície silenciosa do silêncio. […] O rumor é pseudopalavra e pseudossilêncio, por sua vez: é dito alguma coisa e não há palavra; desaparece alguma coisa no rumor e não há silêncio.” [5]

Em “O Pequeno Príncipe”[6], Saint-Exupéry condensou muitas de suas ideias sobre essa retomada de consciência, de uma forma por vezes lúdica, como na metáfora do deserto, que simbolizava o vazio da alma, por vezes poética e filosófica, como no ensinamento “o essencial é invisível aos olhos”.

O livro está recheado de um humanismo que permeava o imaginário de pensadores da época, todos preocupados com um ritmo de crescimento acelerado da ciência moderna e do capitalismo, que progressivamente descolavam o homem do Ser Humano (ou o Ente do Ser, na visão de Sartre) e que culminou com duas guerras mundiais e a criação da bomba atômica. Através das metáforas de “O Pequeno Príncipe”, Saint-Exupéry nos conta os seus dramas morais pessoais e a preocupação coletiva com relação ao futuro da humanidade, devolvendo uma certa realidade ao mundo, onde o homem é a única fonte de valor e de moralidade.

A retomada de consciência busca, portanto, reencontrar os caminhos da Existência, numa espécie de culto do Eu interior, na sua acepção de natureza humana, essencial para a salvação do Ser. É, de certa forma, uma luta pela Liberdade, enquanto resultante da emancipação do pensamento, esse bem imaterial que parece ser perseguido pelo gênero humano desde os tempos mais longínquos.

Encontramos essa busca de uma consciência superior em plena era elisabetana, na obra de Shakespeare [7], quando o príncipe Hamlet encontra seu dilema existencial mais fundamental na Cena I, do 3° Ato, expresso no monólogo “ser ou não ser”, cuja melhor interpretação denota a insatisfação do jovem príncipe com a futilidade de sua época, com a podridão do Reino da Dinamarca, onde as consciências se acovardavam ante as conveniências da Corte. Em outro momento da Peça, Hamlet, questionado por Polônio sobre o que estava lendo, responde, fingindo-se de louco: “palavras, palavras, palavras”, parafraseando a consciência da época, que não se importava verdadeiramente com nada.

Essa crise de consciência se agravou com o advento da pós-modernidade, embalada pela Guerra Fria e a ameaça constante de uma catástrofe nuclear durante boa parte da segunda metade do século XX. Uma nova consciência emerge, tutelada por um mercado capitalista ávido pelo consumismo, e que irá forjar aquilo que costumamos chamar de Sociedade do Consumo. Incerteza existencial, somada com globalização, banalização de costumes, obsolescência programada (Schumpeter), supremacia da lógica do mercado e demandas culturais transgênicas formaram um amálgama de novos valores, descartáveis, temerários, individualistas e de pobreza intelectual, desprovidos de uma consciência crítica.

O sociólogo polonês Zigmund Bauman denuncia com frequência esse flagelo do homem pós-moderno em sua obra. Para ele, a marca da sociedade pós-moderna é a própria “vontade de liberdade”, com o abandono da crença de uma vida social estável, segura e ordenada, prometida pela falida Modernidade. Mas essa liberdade é determinada pelas Leis de mercado, flexível, transitória e infiel, moldando, portanto, uma moral “de ocasião”, descartável ao menor sinal de inadequação às novas demandas de consumo. [8]

O homem pós-moderno não pode criar vínculos duradouros, sob pena de ser excluído e descartado. O pertencimento à sociedade pós-moderna exige uma consciência adquirida em corredores de shoppings centers, um narciso fraco, uma moral de cabide, que pode ser vestida conforme a ocasião. Hoje, ética e moral viram mercadorias na sociedade de consumo.

Parece que o deserto humano pensado por Exupéry está cada vez mais vasto e perigoso. Em todas as instâncias da vida social e política, estamos sujeitos às forças de um mercado dominador e cada vez menos controlado, que transforma tudo que toca em mercadoria.

No Direito, isso não é diferente. As constantes perdas em matéria de segurança jurídica, a relativização de valores e princípios tradicionais, a desconstrução de sólidos fundamentos da ordem jurídica, o ativismo judicial e a crescente invasão na esfera da vida privada dos indivíduos, são reflexos imediatos da nossa incapacidade de retomar uma consciência política emancipatória e libertária, como forma de reação.

Na esfera do Direito Tributário, essa deformação se manifesta de forma perigosa e pragmática: a banalização do protagonismo do contribuinte na relação tributária. Com a constante centralização da arrecadação, reformas por decretos e relativização de princípios como o da capacidade contributiva, da progressividade da tributação, da legalidade e da vedação do confisco, vemos crescer cada vez mais o uso do Direito Tributário como instrumento político de dominação, ou, se preferirem, o uso ideológico do tributo. Estamos perdendo, aos poucos, a percepção do justo em matéria tributária, especialmente no que pertine à preservação da liberdade do contribuinte.

Denunciando essa deformação do Direito pelo mundo pós-moderno, Misabel Abreu Machado Derzi, afirma que “instalam-se, ao lado do pluralismo e da complexidade, a ausência de regras, a permissividade, a descrença generalizada, a incerteza e a indecisão, de tal modo que princípios jurídicos até então sólidos e bem fundamentados como segurança jurídica, capacidade contributiva, progressividade do imposto, igualdade e até mesmo legalidade são postos em dúvida” [9].

A defesa da liberdade do contribuinte, então, deve ser o ponto de partida para uma retomada de consciência da condição de contribuinte, na moderna sociedade de consumo. Deve ser a reação a toda vulgarização e relativização dos valores e princípios fundamentais do Direito Tributário, pois, tal e qual era para o humanismo, ela confere ao homem-contribuinte a prerrogativa de dialogar com o Poder Tributante e lutar pela criação de um imposto justo. Em última instância, a consciência de contribuinte, enquanto um dos pilares da liberdade do cidadão, proporciona o estabelecimento de uma efetiva e eficiente ética tributária e justiça social.

Essa consciência pressupõe o compromisso permanente com o coletivo, com a res publica e, em última análise, com o próprio Estado. Ela corresponde a uma certa alteridade da condição de contribuinte, autoconsciente de seus direitos e deveres, de seu pertencimento ao Estado, transportando a noção de sujeição tributária para um paradigma coletivo, de autonomia (no sentido dado por Rousseau), onde a sujeição tributária satisfaz tanto a necessidade de financiamento do Estado quanto de afirmação dos limites e garantias do poder fiscal. 

Significa, portanto, o abandono de uma visão da sujeição tributária meramente individualista e mesquinha, movida pela lógica de privilégios fiscais e simulacros disfarçados de planejamento tributário, vícios próprios da consciência pós-moderna, validados por um sistema formalista, ainda de matriz positivista, cuja semântica oblitera permanentemente os efeitos pragmáticos da tão esperada justiça distributiva e da equidade em matéria tributária. O tradicional clientelismo no universo da tributação é capturado muito bem por Ricardo Lobo Torres, quando define o privilégio odioso como “a permissão destituída de razoabilidade, para que alguém deixe de pagar os tributos que incidem genericamente sobre todos os contribuintes ou receba, como alguns poucos, benefícios inextensíveis aos demais”. [10]

Na busca dessa consciência, o Estado também exerce um papel fundamental, não só pela conduta ética na relação tributária e na preservação da moralidade nos atos da Administração Pública, mas também pela consciência de seus agentes de que, ao lado de suas funções voltadas para a fiscalização e arrecadação de tributos, existe o dever constitucional de defender os direitos e garantias do contribuinte, derivado da mais pura noção de liberdade e autonomia desse contribuinte, que remonta aos fundamentos do contratualismo. 

Segundo Pacheco, “a eficiência não é apenas arrecadar o máximo possível; é arrecadar o que for devido e apenas o que for devido, observando os princípios constitucionais que informam o direito tributário e a realização dos objetivos fundamentais da República.” [11]

Em outras palavras, como desdobramento da carga principiológica da Constituição Federal, os agentes fiscais do Estado têm o dever de contribuir para a realização da justiça fiscal, o que contribuiria para uma educação fiscal emancipadora e perene do contribuinte, criando uma simbiose na relação tributária que se aproximaria muito do que Amartya Sen chama de “abordagens comparativas de justiça endereçadas às realizações sociais”. [12]

Sem esse esforço conjunto, em prol da retomada de uma forte consciência de contribuinte, dificilmente avançaremos em matéria de justiça fiscal e social. Paradoxalmente, a reforma tributária brasileira promovida pela Emenda Constitucional nª 132/2023, atualmente em fase de regulamentação no Congresso Nacional (PLP nº 68/2024), parece se distanciar desses objetivos emancipatórios, adotando uma cultura ainda baseada no clientelismo, em privilégios fiscais e numa semântica obliteradora da equidade, enquanto, por outro lado, tende a deslocar o contribuinte para a condição de paciente terminal, prescrevendo-lhe remédios paliativos para a injustiça fiscal de cada dia, como o cashback, as isenções tributárias sobre a cesta básica e outros favores fiscais, muito distante da posição de protagonista da tributação que deveria ocupar.

É urgente, portanto, que políticos, operadores do Direito, acadêmicos, empresários e cidadãos se dediquem ao estudo dos reais pressupostos que erigiram o Estado Moderno e redescubram nele o verdadeiro sentido do dever de pagar tributos, restaurando, assim, uma consciência tributária há muito perdida na banalização dos costumes e na mercantilização da vida, promovida de forma perversa e intencional pela sociedade de consumo atual, e afastando de vez do senso comum a concepção de tributação atribuída à Jean-Baptiste Colbert, ministro de estado e da economia do rei Luís XIV, na França do séc. XVII, segundo o qual “l’art de l’imposition consiste à plumer l’oie pour obtenir le plus possible de plumes avec le moins possible de cris” [13].

NOTAS:

[1] BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Trad.Fernando Tomaz, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, p.15.

[2] WARAT, Luís Alberto. Saber Crítico e Senso Comum Teórico dos JuristasIn: Revista Sequência – PPGD UFSC, vol.3, nª 5, Florianópolis: 1982. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/17121/15692, acesso em: 21/07/2024.

[3] BERT, J.-C, Saint-Exupéry, Éditions Universitaires, em Livres de France, Março de 1955, n° 3.

[4] DIOLÉ, Philippe. O Mais Belo Deserto do Mundo, Ed.Albin Michel, 1955, p.70.

[5] PICARD, Max. Le Monde du Silence, traduit de l’allemand par J.-J. Anstett, Ed. Presses Universitaires de France, 1954, pp. 134/139.

[6] SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. Le Petit Prince. Paris: Gallimard, 2007.

[7] SHAKESPEARE, William. Hamlet, trad. Anna Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça, Bárbara Heliodora, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015, pp. 168 e 182.

[8] BAUMAN, Zigmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.

[9] DERZI, Misabel Abreu Machado. A Praticidade, a Substituição Tributária e o Direito Fundamental à Justiça IndividualIn: Tributos e Direitos Fundamentais. Coordenador Octávio Campos Fischer. São Paulo: Dialética, 2004, p.262.

[10] TORRES, Ricardo Lobo. A Legitimação da Capacidade Contributiva e dos Direitos Fundamentais do ContribuinteIn: Direito Tributário: homenagem a Alcides Jorge Costa. Coord.de Luis Eduardo Schoiueri. Vol. I, São Paulo: Quartier Latin, 2003, pg. 437.

[11] PACHECO, Velocino. O Brasil tem Jeito? In: Direito Tributário em Debate, 2016. Disponível em https://direitotributarioemdebate.blogspot.com/2016/04/o-brasil-tem-jeito.html?m=1, Acesso em 21/07/2024. 

[12] SEN, Amartya. A Ideia de Justiça. Trad. Denise Bottmann, Ricardo Doninelli Mendes, São Paulo: Cia.das Letras, 2011.

[13] Em tradução livre: “A arte da tributação consiste em depenar o ganso para obter o máximo possível de penas com o mínimo possível de gritos”.


Fabiano Ramalho é Advogado, especialista em Direito Tributário pela FGV, mestre em Direito pela UFSC e consultor em direito portuário e regulatório. Foi CEO do Porto de São Francisco do Sul (SC) e Diretor de Assuntos Regulatórios e Jurídicos da SC Participações e Parcerias S/A – SCPar (SC).


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