Resumo
Com a consolidação da União Europeia, um Direito Europeu emerge, com a finalidade de promover a harmonização e a integração da legislação dos Estados-Membros, conciliando a aplicação dos diferentes ordenamentos jurídicos nas relações entre cidadãos e empresas envolvendo múltiplos países. Dentre as normas com esse objetivo, surge, em 2008, o Regulamento n° 593, conhecido como Roma I, que define a lei aplicável nas relações contratuais, no qual o legislador europeu privilegiou o princípio da autonomia da vontade das partes. Sem embargo da importância e relevância de tal princípio, alguns ajustes parecem ser necessários. Julgados do Tribunal de Justiça da União Europeia tem enfrentado, com relativa frequência, conflitos envolvendo potencial abuso no exercício dessa autonomia de vontades. O presente estudo tem por objetivo investigar esses abusos e avaliar as condições de eficácia plena do Regulamento n° 593/2008.
Abstract
With the consolidation of the European Union, a European Law emerges, aimed at promoting the harmonization and integration of the legislation of Member States, reconciling the application of different legal systems in relations between citizens and businesses involving multiple countries. Among the norms with this objective, Regulation No. 593, known as Rome I, was established in 2008, defining the law applicable to contractual relations, wherein the European legislator prioritized the principle of party autonomy. Despite the importance and relevance of this principle, certain adjustments appear necessary. Judgments from the European Court of Justice have frequently addressed conflicts involving potential abuse in the exercise of this autonomy. This study aims to investigate these abuses and evaluate the full effectiveness of Regulation No. 593/2008.
1 Introdução
No mundo atual, onde os principais conflitos parecem ter sido deslocados das relações entre os Estados para as relações entre o globalismo e o nacionalismo, a cooperação internacional surge como uma alternativa viável para a solução dos problemas globais. Dentre os efeitos positivos dessa cooperação, destaca-se a criação de agendas internacionais para a busca de soluções multilaterais, na perspectiva de que problemas globais exigem soluções globais.
A partir do período pós-guerras, em meados do século XX, as organizações internacionais multilaterais foram, aos poucos, ganhando envergadura e aumentando a sua legitimidade e representatividade globais, a partir da comunhão de interesses e valores comuns da comunidade internacional. É o caso, por exemplo, da Organização das Nações Unidas (ONU), da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), do Fundo Monetário Internacional (FMI), da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Nesse mesmo período, a União Europeia começou a ser constituída, endossando, aos poucos e com passos firmes, esse esforço de cooperação. Em 1952, com o Tratado de Paris, foi criada a Comunidade Econômica do Carvão e do Aço (CECA). Poucos anos mais tarde, em 1957, com o Tratado de Roma, foram criadas a Comunidade Europeia da Energia Atómica (EURATOM) e a Comunidade Económica Europeia (CEE). Em 1992, com o Tratado de Masstricht, surgiram a Comunidade Europeia (CE), o Tratado de Política Externa e de Segurança Comum (CFSP) e o Tratado de Justiça e Assuntos Internos (JHA). Em 1997, através do Tratado de Amsterdã, foi criada a Cooperação entre Polícia e Justiça em Matérias Criminais (PJCC), até culminar, em 2007, com a criação da União Europeia, através da celebração do Tratado de Lisboa.
Os Tratados instituídos no âmbito da União Europeia traçam os objetivos comuns dos países membros do bloco, dentre eles, o de integração e harmonização da legislação dos diversos Estados membros, como condição de estabilidade jurídica e política do bloco, nas relações entre os países que o compõem. Isso porque um dos desafios comuns à integração econômica é solucionar os inúmeros conflitos normativos passíveis de ocorrer na definição da lei aplicável ao caso concreto.
Atualmente, com a saída do Reino Unido em 2020, a União Europeia é formada por 27 países, e, em que pese o esforço de harmonização legislava, cada um desses países possui um ordenamento jurídico específico, não necessariamente compatível com os demais. E, sendo um dos objetivos da União Europeia a integração econômica, as relações comerciais, em especial, são estabelecidas muito frequentemente entre contratantes estabelecidos em países diferentes, sob a égide de legislações diferentes e surtindo efeitos sobre partes relacionadas de diferentes nacionalidades, o que, não raras vezes, resulta em conflito de competência normativa.
2 Harmonização da Legislação Europeia e Autonomia da Vontade das Partes
Diante da complexidade dos contratos assim celebrados, multiconectados com a legislação de dois ou mais países, torna-se necessário o estabelecimento de normas claras de definição de competências, válidas de forma universal para todos os países do bloco europeu, que eliminem ou, no mínimo, mitiguem os conflitos de jurisdição e competência possivelmente emergentes das relações contratuais estabelecidas.
Por outro lado, o estabelecimento de normas de definição de competência no âmbito da União Europeia exigia a criação de um Tribunal competente para decidir sobre a matéria. Assim, uma Corte de Justiça com competência para julgar tais conflitos foi criada em 1952, que é o Tribunal de Justiça da União Europeia, com sede em Luxemburgo, composto por 28 juízes (um juiz de cada país da União Europeia), com a missão de velar para que o direito europeu seja interpretado e aplicado da mesma forma em todos os países da União Europeia e de garantir que as instituições e os países da União Europeia respeitem o direito europeu.
Uma das atribuições do Tribunal de Justiça da União Europeia, em colaboração com os órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros, zelando pela aplicação e a interpretação uniformes do direito da União, é a interpretação do direito da União Europeia, a pedido dos juízes nacionais, através do instituto jurídico denominado “reenvio prejudicial”, previsto no art. 267 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, que é o mecanismo utilizado para garantir a aplicação uniforme do Direito Europeu, ao mesmo tempo em que respeita a autonomia e independência dos juízes nacionais.
Na visão de Heine (2005):
A questão prejudicial é uma via indireta de controle da aplicação do Direito Comunitário, como dito anteriormente, suscitada pelo juiz ou Tribunal Nacional de um Estado Membro, nos casos em que se invoca uma questão comunitária controvertida. A medida é provocada de ofício, fundamentadamente, constituindo um procedimento interlocutório, qualquer que seja o tipo ou a natureza da questão posta em litígio.
Já no que diz respeito à legislação, com o objetivo imediato de regular esses potenciais conflitos, e mediato de alcançar esses objetivos de integração e harmonização do bloco, a União Europeia adota uma variedade de atos legislativos, alcançando os mais diversos assuntos, como agricultura, consumidor, política externa e segurança, saúde pública, tributação, cultura e comércio, sendo que alguns deles possuem natureza vinculativa e são aplicáveis a todos os países da União Europeia.
Dentre esses atos legislativos, estão os Regulamentos, atos legislativos que vinculam e se aplicam a todos os Estados da União Europeia de forma imediata, mediante a publicação no Diário Oficial da União Europeia e independe de qualquer medida de internalização na legislação dos países membros. Os Regulamentos estão previstos no art. 288 do Regulamento sobre o Funcionamento da União Europeia, nos seguintes termos:
Para exercerem as competências da União, as instituições adotam regulamentos, diretivas, decisões, recomendações e pareceres.
O regulamento tem caráter geral. É obrigatório em todos os seus elementos e diretamente aplicável em todos os Estados-Membros. (UE, 2012)
Dentre os Regulamentos atualmente em vigor na União Europeia, está o Regulamento n° 593 (UE, 2008), de 17 de junho de 2008 (JO L 177/6, de 04/07/2008), do Parlamento Europeu e do Conselho da União Europeia, conhecido como Roma I, aplicável às obrigações contratuais em matéria civil e comercial que impliquem um conflito de leis. O Regulamento Roma I veio com o propósito de a) converter a Convenção de Roma (1980) em um ato normativo da União Europeia, e b) modernizar as disposições relativas ao Direito das Obrigações no âmbito da União Europeia, especialmente sobre comércio eletrônico e sobre a proteção do consumidor.
De forma ampla, esse conjunto de esforços se traduz no claro objetivo de trazer maior segurança jurídica aos negócios no âmbito comunitário, sujeito a uma pluralidade de ordenamentos jurídicos nacionais.
Hilda (2012), ressaltando esse objetivo, destaca que:
Por otra parte, detrás de la regulación del Reglamento «Roma I» también subyace, en última instancia, la voluntad de reforzar la seguridad jurídica en el ámbito de la ley aplicable a los contratos internacionales, en el marco de la Unión Europea, en aras de alcanzar una mayor uniformidad de soluciones entre los Estados miembros.[1]
Junto ao esforço de uniformização e integração da legislação no âmbito da União Europeia, o Regulamento n° 593/2008 (Roma I) também dotou de eficácia normativa o princípio da autonomia da vontade das partes na escolha da lei aplicável ao seu contrato. De fato, tal força está afirmada já nos considerandos iniciais da norma, mais especificamente no Considerando n° 11, nos seguintes termos:
“(11) A liberdade das partes de escolherem o direito aplicável deverá constituir uma das pedras angulares do sistema de normas de conflitos de leis em matéria de obrigações contratuais” (UE, 2008).
Nesse sentido, os itens 1 e 2 do art. 3°, do Regulamento n° 593/2008 (Roma I), preveem que:
1. O contrato rege-se pela lei escolhida pelas partes. A escolha deve ser expressa ou resultar de forma clara das disposições do contrato, ou das circunstâncias do caso. Mediante a sua escolha, as partes podem designar a lei aplicável à totalidade ou apenas a parte do contrato.
2. Em qualquer momento, as partes podem acordar em subordinar o contrato a uma lei diferente da que precedentemente o regulava, quer por força de uma escolha anterior nos termos do presente artigo, quer por força de outras disposições do presente regulamento. Qualquer modificação quanto à determinação da lei aplicável, ocorrida posteriormente à celebração do contrato, não afeta a validade formal do contrato, nos termos do artigo 11.o, nem prejudica os direitos de terceiros.
A liberdade de disposição das partes, presente também em outros instrumentos normativos contemporâneos ao Regulamento n° 593/2008 (Roma I), como o Regulamento n° 864/2007 (Roma II), por exemplo, tem como objetivo amadurecer as relações comerciais na União Europeia, fortalecendo as partes contratantes por meio da livre escolha do direito aplicável aos seus pactos.
Dessa forma, em termos gerais, é a lei escolhida expressamente pelas partes, ou, ainda, aquela que resultar de forma objetiva e indene de dúvidas das disposições contratuais ou dos elementos do caso concreto, que será aplicada. A exceção fica por conta da existência de normas imperativas de uma determinada ordem jurídica, nacional ou comunitária, não derrogáveis pelo acordo entre as partes, conforme previsto nos itens 3 e 4 do art. 3°, hipótese em que a lei escolhida pelas partes não prevalece quando todos os demais elementos relevantes da relação contratual guardem conexão com o território de um ou mais países da União Europeia.
O Regulamento n° 593/2008 prevê, ainda, no art. 4°, a hipótese de falta de disposição das partes a respeito da lei aplicável, determinando, como regra, que, nesse caso, será aplicável a lei do país em onde o contraente que deve efetuar a prestação característica do contrato tem a sua residência habitual. Ainda nessa hipótese, será aplicado o critério da conexão mais estreita apenas nos casos em que não seja possível determinar a prestação característica da relação contratual estabelecida pelas partes.
3 A Questão da Eficácia e as Práticas Abusivas
No entanto, em que pese o esforço de desenvolvimento de uma cultura jurídica madura e focada na autonomia das partes, as relações contratuais havidas sob a égide do Regulamento n° 593/2008 têm indicado, na prática, possíveis desvios de finalidade, fazendo surgir dúvidas sobre a extensão dessa liberdade conferida às partes contratantes. Podem as partes escolher qualquer direito como o aplicável ao seu contrato ou deve haver um limite para essa liberdade?
Com essa preocupação, Braghini (2015) explica que:
É controvertido na doutrina se as partes podem escolher qualquer direito como o aplicável ou se esta liberdade sofre certas restrições. O mínimo que se exige é que o direito escolhido tenha algum nexo de causalidade ou conexão com o contrato internacional celebrado.
Reiterados julgados do Tribunal de Justiça da União Europeia sobre o tema, em sede de reenvio prejudicial, demonstram que a questão está longe de gerar a esperada segurança jurídica, o que pode sinalizar a necessidade de aprimoramento do Regulamento n° 593/2008 (Roma I). Essa reiteração ocorre exatamente pela, no mínimo, falta de clareza e de harmonização das normas das diversas jurisdições da União Europeia com a prevenção de abusos na escolha da lei aplicável pelas partes contratantes, gerando litígios que acabam por exigir dos tribunais locais a suscitação de dúvida quanto ao direito aplicável no caso concreto.
A fim de ilustrar a natureza dos conflitos envolvendo a escolha da lei aplicável nos contratos, em sede de reenvio prejudicial, selecionamos para o presente estudo um julgado do Tribunal de Justiça da União Europeia, como paradigma da controvérsia, a seguir apresentado.
O caso foi decidido através do acórdão (TJUE, 2017) proferido pela 5ª Seção do Tribunal de Justiça, em 8 de junho de 2017, no Processo C-54/16, publicado no JO C 156, de 2.5.2016 (pedido de decisão prejudicial do Tribunale Ordinario di Venezia – Itália), em que são partes Vinyls Italia SpA, em liquidação, e Mediterranea di Navigazione SpA. Esse acórdão foi assim ementado:
Reenvio prejudicial – Espaço de liberdade, segurança e justiça – Processos de insolvência – Regulamento (CE) n° 1346/2000 – Artigos 4° e 13° – Atos prejudiciais a todos os credores – Condições em que o ato em causa pode ser impugnado – Ato sujeito à lei de um Estado-Membro diferente do Estado de abertura do processo – Ato não impugnável com fundamento nessa lei – Regulamento (CE) n° 593/2008 – Artigo 3°, n° 3 – Lei escolhida pelas partes – Localização de todos os elementos da situação em causa no Estado de abertura do processo – Incidência. (TJUE, 2017).
O caso trata de um contrato de fretamento marítimo, celebrado na Itália, entre duas empresas italianas, com sede na Itália, para o transporte de substâncias químicas por barcos que arvoram pavilhão italiano. No entanto, o referido contrato foi redigido em língua inglesa e contém uma cláusula na qual as partes escolhem o direito inglês como aplicável às relações contratuais, bem como uma cláusula arbitral, elegendo a London Maritime Arbitrators Association para dirimir os conflitos daí decorrentes.
O conflito, materializado em questões prejudiciais enviadas ao Tribunal de Justiça da União Europeia em sede de reenvio prejudicial, reside em pagamentos efetuados pela empresa Vinyls Italia SpA à empesa Mediterranea di Navigazione SpA, no valor total de 447.740,27 euros, em momento em que era evidente que aquela estava insolvente, sendo alegado pelo administrador da massa falida da Vinyls Italia SpA que a escolha do Direito Inglês como regente do contrato teve como única finalidade subtrair o contrato da lex fori concursus, desvirtuando a finalidade precípua do princípio da autonomia da vontade das partes positivado no Regulamento n° 593/2008 (Roma I), que é o de assegurar a confiança legítima das partes na aplicabilidade de uma determinada legislação.
Diante disso, a Vinyls Italia SpA, alegando que a manutenção dos mesmos é prejudicial aos demais credores da massa falida, pleiteou a revogação dos mesmos, em conformidade com o artigo 67°, n° 2, da legge fallimentare italiana (Lei da insolvência), aprovada pelo Regio Decreto n° 267 (Decreto Real n° 267), de 16 de março de 1942 (GURI (Jornal Oficial) n° 81, de 6 de abril de 1942), que assim dispõe:
Se o administrador da insolvência provar que a outra parte conhecia a situação de insolvência do devedor, são também revogados os pagamentos de dívidas líquidas e exigíveis, os atos a título oneroso e os atos constitutivos de um direito de preferência por dívidas, incluindo de terceiros, constituídas na mesma ocasião, caso tenham sido efetuados nos seis meses anteriores à declaração de insolvência.
A defesa da Mediterranea di Navigazione SpA consiste na alegação de que os pagamentos controvertidos foram efetuados em cumprimento de um contrato que as partes escolheram submeter ao direito inglês, sendo que esse direito, mais especificamente no artigo 239°, n° 2, do Insolvency Act de 1986, “exige que o administrador da insolvência prove que o devedor teve a intenção específica de beneficiar o credor destinatário do pagamento e não a prova de que o credor conhecia a situação de insolvência do devedor”.
Diante dessa controvérsia, o Tribunale Ordinario di Venezia (Tribunal de Veneza) decidiu suspender o processo e submeter ao Tribunal de Justiça da União Europeia algumas questões prejudiciais, dentre as quais, as que interessam ao objeto do presente estudo são as seguintes:
4) Deve o artigo 1.°, n° 1, do Regulamento n° 593/2008 ser interpretado no sentido de que as “obrigações que impliquem um conflito de leis” para efeitos da aplicabilidade do mesmo regulamento abrangem também um contrato de fretamento marítimo que foi celebrado num Estado‑Membro entre sociedades com sede social nesse mesmo Estado‑Membro e que contêm uma cláusula de eleição da legislação de outro Estado‑Membro?
5) Em caso de resposta afirmativa à quarta questão, deve o artigo 3°, n° 3, do Regulamento n° 593/2008, conjugado com o artigo 13° do Regulamento n° 1346/2000, ser interpretado no sentido de que a vontade das partes de submeterem um contrato à legislação de um Estado‑Membro distinto daquele onde se situem “todos os outros elementos relevantes da situação” impede a aplicação de disposições imperativas da legislação deste último Estado‑Membro aplicáveis como lex fori concursus à impugnação de atos efetuados antes da insolvência, em prejuízo do conjunto dos credores, prevalecendo assim sobre a cláusula de exclusão consagrada pelo artigo 13.° do Regulamento n° 1346/2000?
O Tribunal de Justiça decidiu, então, que os artigos 4° e 13° do Regulamento n° 1346/2000 constituem uma lei especial relativamente aos outros diplomas que regem o direito internacional privado dos Estados‑Membros, sobretudo em relação ao Regulamento n° 593 (Roma I), e devem ser interpretados à luz dos objetivos prosseguidos pelo Regulamento n° 1346/2000. Diante disso, entendeu que não se aplica ao caso o artigo 3°, n° 3, do Regulamento n° 593/2008 (Roma I), que não serve para dirimir a questão de saber se há que ter em conta a escolha das partes para efeitos de aplicação do art. 13° do Regulamento n° 1346/2000, uma vez que todos os outros elementos de conexão, com exceção da escolha da lei aplicável ao contrato, estão localizados num país diferente daquele cuja lei foi escolhida.
No entanto, o Tribunal de Justiça deixou a cargo da Corte responsável pelo reenvio a decisão no tocante à existência de eventual abuso no exercício do princípio da autonomia da vontade das partes na escolha da lei aplicável, o que poderia afastar a validade da cláusula de escolha do Direito Inglês, fixando as premissas com que tal circunstância deve ser analisada, como segue:
Neste contexto, decorre de jurisprudência assente que a constatação da existência de uma prática abusiva exige a verificação de um elemento objetivo e de um elemento subjetivo. Por um lado, no que respeita ao elemento objetivo, esta constatação exige um conjunto de circunstâncias objetivas das quais resulte que, apesar do respeito formal das condições previstas na legislação da União, o objetivo prosseguido por essa legislação não foi alcançado. Por outro lado, tal constatação exige também um elemento subjetivo, concretamente, deve resultar de um conjunto de elementos objetivos que a finalidade essencial das operações em causa é obter uma vantagem indevida.
E, mais adiante, arremata a questão, determinando que:
Assim, o artigo 13.° do Regulamento n° 1346/2000 só deixa de se aplicar a uma situação como a que está em causa no processo principal se se afigurar, de forma objetiva, que o objetivo prosseguido por essa aplicação, que, neste contexto, consiste em assegurar a confiança legítima das partes na aplicabilidade de uma determinada legislação, não foi atingido e que o contrato foi artificialmente submetido ao direito de um determinado Estado‑Membro, concretamente, com o objetivo principal de não sujeitar efetivamente este contrato à legislação do Estado‑Membro escolhido, mas sim de invocar o direito deste Estado‑Membro para subtrair o contrato, ou os atos de execução deste, à aplicação da lex fori concursus. (Grifamos)
4 Conclusões
A eficácia do Regulamento n° 593/2008 (Roma I) quanto à criação de um ambiente de segurança jurídica contratual na União Europeia, sob o prisma da correta definição da lei aplicável ao contrato, depende sobremaneira do princípio da autonomia da vontade das partes na escolha da lei aplicável ao contrato, previsto no art. 3°, eleito pelo legislador europeu como viga mestra das relações contratuais multiconectadas dentro do bloco Europeu.
Nesse sentido, o presente estudo teve como objetivo investigar as condições de tal eficácia, a partir da ocorrência de desvios de finalidade nessa escolha, subvertendo a legitimidade da lei escolhida como regente da relação contratual e, com isso, gerando insegurança jurídica, que é o efeito contrário ao esperado pelo legislador Europeu.
O volume de casos submetidos ao Tribunal de Justiça da União Europeia, decorrentes dos conflitos de competência de lei, sob a suspeita de desvio de finalidade do princípio da autonomia da vontade das partes, coloca em risco a eficácia das normas trazidas pelo Regulamento n° 593/2008 (Roma I).
Enquanto pende uma solução legislativa, por meio de políticas de law enforcement, com a fixação de limites objetivos ao princípio da autonomia da vontade das partes, o Tribunal de Justiça da União Europeia, em sede de Reenvio Prejudicial, tem interpretado a legislação no sentido de recomentar ao órgão jurisdicional do reenvio a definição de critérios para a identificação dos abusos no exercício da autonomia da vontade das partes na escolha da lei aplicável aos contratos.
É o caso do julgado trazido à análise no presente estudo, onde a Corte estabeleceu critérios objetivos e subjetivos para que a Corte do reenvio enfrente a questão da existência de abusos na escolha das partes. Embora formalmente válida a escolha no caso enfrentado nesse julgamento, todos os elementos de conexão e as circunstâncias do contrato parecem indicar o abuso na escolha, com o objetivo de obter vantagem indevida, em detrimento dos demais credores da massa falida.
Assim, é de fundamental importância que sejam sanados esses gaps normativos, promovendo os ajustes necessários para que o Regulamento Roma I, assim como todo o sistema jurídico da União Europeia, possa harmonizar a primazia da autonomia da vontade das partes, eleita pelo legislador Europeu como um dos pilares do Direito Comunitário, com a segurança jurídica almejada pelas partes contratantes para o planejamento dos seus negócios no âmbito da União Europeia, a partir da perspectiva das obrigações contratuais.
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Notas:
[1] “Por outro lado, por trás da regulamentação do Regulamento “Roma I”, existe também, em última instância, a vontade de fortalecer a segurança jurídica no âmbito da lei aplicável aos contratos internacionais, no âmbito da União Europeia, por razões de alcançar uma maior uniformidade de soluções entre os Estados-Membros.”
Sobre o autor: Fabiano Ramalho é Advogado, especialista em Direito Tributário pela FGV, mestre em Direito pela UFSC e consultor jurídico em direito empresarial, tributário, societário, portuário e regulatório, é membro-fundador da Associação de Estudos Tributários de Santa Catarina – ASSET/SC, foi CEO do Porto de São Francisco do Sul (SC) e Diretor de Assuntos Regulatórios e Jurídicos da SC Participações e Parcerias S/A – SCPar (SC).
Fabiano Ramalho
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